sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008




A difícil terefa de pegar um ônibus


    Quando eu trabalhava no Plano Piloto no ano de 1999 começou a circular um novo modelo de ônibus chamado Millenium. Aparentava ser muito confortável e eficiente. Aparentava. Mas pelo menos era bonito. Bastava entrar em um e logo se percebia que a situação era outra. Os bancos, que pareciam ser confortáveis eram duros e o motor vivia enguiçando.
    Mas tinha uma inovação soberba, a televisão. É, tinha uma televisão, que ficava no teto logo depois da roleta, com uma programação algo como o canal do "chapéu" com notícias do chapéu ou o canal do "boi" e assim por diante. Não sei se felizmente (ou não) eu nunca pude ver esta programação porque me sento sempre no banco da frente reservado a portadores de deficiência física, aliás, esta era a grande revolução do "Millenium". O espaço reservado aos idosos e deficientes eram duas cadeiras espremidas do lado esquerdo, atrás do motorista num lugar tão apertado que mal passava uma pessoa normal. Uma vez presenciei uma senhora idosa que entrou no ônibus e foi "convidada pelo motorista a se retirar" por não haver mais cadeiras desocupadas.
    Isso me fez pensar que, pela mentalidade do fabricante do veículo e, por
tabela, do dono da empresa de transporte coletivo que adotou o modelo, no novo
"millenium" não há espaço para idosos e deficientes. Agora, dez anos depois, os
ônibus tem rampa, um carro pra cada linha. Sendo assim, se um cadeirante quiser ir
para o Plano tem de pegar um único carro que pode passar a qualquer momento entre as
08h e 22h.
    As cidades são construídas para os "iguais" e não para o diferentes e ser
diferente é também ser excluído. Basta ter o nariz tôrto ou o olho caído para sentir
as consequências. A natureza não é perfeita como dizem mas é conveniente e nessa
conveniência sabe ser sábia. Ela cria dentro da mesma espécie indivíduos sempre
iguais e todos adaptados ao meio em que vivem e os que não conseguem se adaptar são
cruelmente eliminados. Esse processo de seleção natural revela uma faceta eugênica e
fascista da natureza. E deveria ser diferente? Quais pais gostariam de criar filhos
"defeituosos"? Quantos não são abandonados? E os que sobrevivem, crescem, conseguem
às duras penas se educar, conseguem trabalhar, constituir família... e ainda assim
são massacrados pelas políticas exclusivistas do estado que, supostamente defende
seus direitos mas não fiscaliza se esses direitos estão sendo respeitados. E o olhar
tôrto da sociedade hipócrita que finje se importar...
    Nota-se esse apelo ancestral imputado na natureza humana a ecoar nas palavras veladas das pessoas nas ruas. Alguém que olha atravessado, a pessoa que passa para o assento seguinte na lotação logo que esse é desocupado, o "amigo" que não ri da piada que você conta mas ri da mesma piada contada por outro e assim segue. Isto não é apenas um problema do estado ou da sociedade mas uma questão de humanidade. É preciso suplantar a seleção natural e enxergar além da forma e ver que dentro de cada corpo existe uma pessoa que sente e pensa. Dentro de uma forma diferente está um igual que merece ser tratado com a mesma dignidade.
    Eu me lembro do meu irmão falando uma de suas frases célebres, quando tínhamos uma banda, sobre se perder no meio da música. Ele dizia "você tem que pegar o bonde (ônibus) andando". Se você é um diferente saiba que o ônibus não vai parar pra você ou se parar os degraus serão muito altos pra subir ou se você subir os acentos serão muito apertados e se não forem estarão todos ocupados e com alguma sorte alguém pode te ceder o lugar e sorte é o que você vai precisar porque o seu direito não vale nada. Mas, também quando tínhamos uma banda outra lição eu aprendi. Temos que improvisar. E assim vamos. Improvisando e vivendo, improvisando e improvisando e improvisando...