domingo, 10 de maio de 2020

GOD ZAP (Com revisão de Edi Silva)



Letra da música após o texto

  Quando eu era jovem, minha mãe me disse que procurasse deus na bíblia, pois ele deveria estar lá. Revirei centenas de páginas, li cada linha para entender que o deus descrito ali não passava de uma entidade com qualidades humanas, inclusive as piores. Este deus havia elegido como escolhido um povo que era seu exato espelho para seguir os seus comandos e dominar toda a terra ao redor de onde habitavam saqueando, estuprando e passando a fio de espada as mulheres e crianças daqueles povos cujos costumes não se adequavam aos seus julgamentos morais. Os tais heróis bíblicos eram lobos em pele de cordeiro. Eventualmente um homem surgiu com uma proposta pacífica, mas Yahweh Sabaoth, o deus dos exércitos, fez com que os seus sacerdotes o matassem pregado em um poste. Muitos séculos depois, 6 milhões desses escolhidos foram exterminados em campos de concentração por um lunático demente que queria dominar o mundo. Onde estava deus nessa hora?
Me disseram para procurar deus na igreja. Ao longo desses anos fui em todas que soube existir. Vi homens de batina proferirem sermões cimentados na arrogância do alto de sua ignorância como profundos conhecedores do intangível. Vi aproveitadores enriquecendo às custas da privação de seus rebanhos formados em sua maioria por pobres gananciosos, que barganham com seu deus uma vida de prosperidades em troca de um percentual de seus ganhos. Vi ascetas que fizeram voto de silêncio em busca da auto iluminação e financeiramente bem sucedidos, incapazes do desapego, se misturarem ao submundo da política em conspirações para derrubar governos democraticamente eleitos. Vi a vaidade daqueles que se auto proclamam a cereja do bolo da revolução espiritualista vaticinando a transição planetária que expurgaria do planeta espíritos inferiores, enquanto se aliam as novas hordas de fascistas que levariam a termo o extermínio dessas supostas massas. Mas também vi pessoas decentes e honestas que preferiam seguir seus caminhos em silêncio se retirando desses lugares abomináveis e da presença nefasta desses outros. Deus não estava em nenhum desses lugares, então fui embora.
Ouvi dizer que estaria então no seio familiar. Fui procurar e encontrei lares onde o pai bêbado espancava os filhos e a esposa aceitava passivamente, porque havia sido criada em uma sociedade de submissão, legado da igreja romana patriarcal e machista. Eu vi pais fecharem os olhos para os abusos morais e sexuais sofridos pelas meninas e meninos na calada da noite e por trás das portas. Vi casas entupidas de crianças subnutridas e educadas com meias verdades para nunca se insurgirem contra o sistema político anti humano e fracassado ao qual são submetidas. No domingo irão à igreja ouvir o consolo de que o reino dos céus pertence aos pobres. Apesar de clamarem por piedade, parece que deus fez ouvido de mercador ou já não estava mais lá. Apesar disso, também vi lares onde o imperativo era o respeito. Onde as diferenças são toleradas e as contendas se resolvem com conversas e não com autoritarismo patriarcal, o último baluarte da estupidez moral. Pensei que o tal deus poderia estar ali, mas me surpreendi ao perceber que essas pessoas pouco se importavam com sua presença e na maioria das vezes eram ateus.
Como último recurso, me disseram então que deus seria a própria natureza. Como no filme "Madagaskar", eu fui até a natureza para ver se deus estava lá. Tantas cores e formas de extrema beleza e exuberância eu pude ver. Desde as águas cor de topázio da praia de Maragogi, ao esmaecido pôr do sol alaranjado do centro oeste, todas essas riquezas naturais sendo dilapidadas pela criatura eleita por deus como "coroa da criação". Se deus criou todas essas maravilhas, porque criaria algo para as destruir? Também vi o espetáculo de selvageria das feras devorando-se umas às outras capazes de assustar os incautos que acreditam que na natureza tudo é calmo e lindo. Mas há na natureza exemplos de solidariedade e cooperação, sistemas inteiros se beneficiam. Abelhas polinizam flores, mamíferos se alimentam de frutas e espalham sementes para novas árvores, paquidermes devastam planícies em dias, larvas devoram seus hospedeiros, o "Louva-a-deus" fêmea decapita o macho no ato do acasalamento... Tudo é belo e violento no jogo do equilíbrio do ecossistema. Mas as pessoas insistem em atribuir essas qualidades humanas aos animais como se a natureza precisasse copiar o comportamento humano para "evoluir" e não fosse o próprio ser humano apenas mais uma espécie entre as milhares espalhadas pela terra e sujeita às leis naturais. Se deus nos elegeu como a sua criação mais evoluída, esse mesmo deus teria criado o micro organismo tão primevo capaz de extinguir a nossa espécie, o vírus que assola a humanidade? Faltou a coerência, não no meu texto mas nas ações dessa suposta divindade. Ou será que eu perdi algo?
Certa vez soube que deus esteve em um hospital. Uma senhora havia dito: "Meu marido estava doente e deus o curou". Fui averiguar o caso e constatei que quem o havia salvo fora o cirurgião do SUS que havia empenhado 8 anos de sua vida estudando medicina e não recebeu nem um agradecimento por estar fazendo o seu trabalho. No lugar dele eu me sentiria insultado por ter perdido o crédito para uma divindade. Nos corredores desse mesmo hospital dezenas de pacientes agonizavam à espera de leitos e atendimento mínimo. Muitos deles morreriam porquê o médico não poderia atender a todos. Definitivamente deus não estava lá.
Outra vez vi um carro com o adesivo "foi deus que me deu" estampado na traseira. Essa pessoa ignora o fato de que a oportunidade de ter um emprego digno que propiciasse a compra de um carro novo deveu-se às mudanças sociais e políticas que permitiram a uma parte massacrada da sociedade, os trabalhadores, ascenderem a um status um pouco acima da linha da pobreza. Esse cidadão foi o mesmo que inundou as ruas com cartazes de xingamentos pedindo "fora" contra as pessoas que tornaram a sua vida, se não melhor, pelo menos suportável e agora pede pela volta do sistema que o oprimiu durante tantos anos quando a aquisição de bens e serviços como telefone e um carro novo eram apenas um sonho longínquo. Em um coração com tanta ingratidão, certamente não há espaço para deus.
Também vi um carro enfiado num muro destruído pela batida. No porta-malas um adesivo dizia: "este veículo é guiado por deus". Ou deus é barbeiro, ou estava "muito louco". Sem mais.
Mas se deus não está em nenhum desses lugares, o seu enviado, o Messias certamente está. O arauto da destruição, o mensageiro da morte, o vírus linguístico, o ressignificador da barbárie e da desumanização invadiu os corações e as mentes de milhões, semeando uma erva daninha capaz de assimilar e desenvolver tudo o que existe de mais execrável na terra fértil da psique fazendo irromper do fundo do poço o que sempre esteve lá: o racismo, a misoginia, a xenofobia e a homofobia. A solução final para o inimigo declarado, agora pintado em vermelho. Estaria esse novo messias a serviço do conhecido deus de Israel, antes Palestina, antiga Judeia? O deus assassino que quase exterminou a humanidade com uma catástrofe natural, o deus arrogante que aceitou a provocação de satanás e pôs à prova a lealdade de seu servo mais fiel, o mesmo deus sádico que exigiu de seu mais ilustre patriarca que sacrificasse o próprio filho para provar a sua fé? É essa a "divindade" em quem eu deveria acreditar? 
Mas "se" existe um deus verdadeiro, ele não cabe dentro de um conceito humano. É muita pretensão querer reduzi-lo a tão pouco. Eu particularmente não sou capaz nem de imaginar o que ele poderia ser, quanto mais chantageá-lo e escravizá-lo aos meus caprichos e necessidades mesquinhas. 
Como dizem os próprios religiosos, não se pode criar algo do nada, logo o conceito vigente de deus é um conjunto de atribuições humanas aplicadas a um espelho pairando no espaço. Se olhamos, vemos apenas a nós mesmos no reflexo. Talvez em um passado remoto tenham criado à nossa imagem o criador que nos criou à sua imagem, que nada mais é do que a nossa própria. Uma imagem feita de barro, do silício do chão mesclado com matéria orgânica do planeta. Um fenômeno puramente local. Se assim é, porque não veem deus no próximo? Quando digo próximo, estou falando do que está a seu lado neste momento, não o que está atrás de uma tela do outro lado do mundo, como querem os empatas de facebook. Parece-me que devido a força das circunstâncias está havendo um esforço para encontrar um elo nessa relação, o isolamento social tem feito pipocarem mensagens nas redes sociais com cunho religioso e apocalíptico e as pessoas têm se dado conta da necessidade de  estarem mais próximas umas das outras. 
Nunca antes um abraço foi tão caro. 
E acho que já é um pouco tarde demais. O que nos sobrou então? Não é irônico que justamente quando ensaiávamos um combate final às redes sociais e todo o veneno que elas verteram sobre nossas vidas, fomos acometidos pela maior crise sanitária dos últimos cem anos o que nos obrigou a nos tornarmos escravos desta mesma rede para que pudéssemos ao menos nos comunicar com parentes e amigos? O que nos distanciava ontem é o que nos aproxima hoje. O abraço, a demonstração de carinho, o conforto aos desamparados, os encontros, as risadas, a boa música, o choro de despedida, todos são virtuais agora. Finalmente a nossa essência divina nos alcançou e nos desvendou através do deus zap.

Oldair Vieira

Preguntitas sobre Dios

Atahualpa Yupanqui

Un dia, yo pregunté
Abuelo, ¿Dónde está Dios?
Mi abuelo se puso triste
Y nada me respondió
Mi abuelo murió en los campos
Sin rezos, ni confesión

Y lo enterraron los indios
Flauta de caña y tambor

Al tiempo, yo pregunté
Padre, ¿qué sabes de Dios?
Mi padre se puso serio
Y nada me respondió

Mi padre murió en las minas
Sin doctor, ni protección
¡Color de sangre minera
Tiene el oro del patrón!

Mi hermano vive en los montes
Y no conoce una flor
Sudor, malaria y serpiente
Es vida del leñador

Y que naidie (nadie) le pregunte
Si sabe dónde está Dios
¡Por su casa no ha pasado
Tan importante señor!

Yo canto por los caminos
Y cuando estoy en prisión
Oigo las voces del pueblo
Que canta mejor que yo

Hay un asunto en la tierra
Más importante que Dios
Y es que nadie escupa sangre
Pa' que otro viva mejor


¿Qué Dios vela por los pobres?
Tal vez sí y tal vez no
¡Pero es seguro que almuerza
en la mesa del patrón!

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